O lado falso da história de Vitor – o menino de 2 anos assassinado em pleno colo da mãe que o amamentava


Parágrafo 1. Já faz uma semana que o horror aconteceu. Traumatizante, inacreditável, devastador. Já faz uma semana e é tão absurdo e chocante que é como se nem tivesse acontecido – parece uma lenda bizarra, de extremo mau gosto, uma história de terror doentia, inserida em lugares e épocas escuras e bárbaras. Já faz uma semana que um menino de 2 anos, indefeso e frágil, foi assassinado a sangue frio, em pleno colo da mãe, num espaço público, à luz do dia.






Parágrafo 2. O horror indizível que aconteceu já faz uma semana não foi na Síria torturada pelo Estado Islâmico. Não foi na Nigéria martirizada pelo Boko Haram, nem no Afeganistão açoitado pelos Talibans, nem na Somália destripada pelo Al-Shabaab.

Parágrafo 3. O crime estarrecedor aconteceu no Ocidente democrático do século XXI.

Parágrafo 4. O pequeno Vitor, com sua fome de menino de 2 anos, estava sendo amamentado nos braços da mãe, Sônia, quando um passante fez um carinho em seu rosto infantil. Mas eis que, de repente, o afago comovente daquele estranho de mochila e boné se transformou por absurdo em um terror abominável, em forma de lâmina que penetrou afiada e assassina no pescoço da criança, rasgando de modo covarde, brutal, inimaginável, a vida de um menino de 2 anos, a sangue frio, em pleno colo da mãe, num espaço público, à luz do dia.

Parágrafo 5. Nem é preciso dizer, é claro, que este escândalo histórico sacudiu imediatamente todos os cantos do Brasil, começando pela indignada população da cidade-palco da cena tétrica, a catarinense Imbituba, que se levantou e saiu às ruas em choque, mas vestida de verde e amarelo, empunhando faixas e brados que exigiam com veemência a paz, a vida, a defesa dos direitos das crianças e das mães! Não houve dia, desde então, sem que todos os jornais e telejornais do país inteiro dedicassem ampla cobertura ao fato absurdo, impossível de se acreditar, e sem que todas as cidades do Brasil se unissem num abraço único, em protesto retumbante diante da violência inconcebível e inaceitável, em solidariedade para com Sônia, em memória do pequeno Vitor, em reflexão profunda sobre o que teria levado uma nação democrática a se tornar cenário, em pleno século XXI, de um ato de tamanha selvageria.

Parágrafo 6. Todos os brasileiros, sem nenhuma exceção que não fosse a do próprio monstro homicida, se manifestaram num misto de choque, incredulidade, trauma, indignação, vontade irrefreável de fazer o que quer que fosse preciso para que tamanha bestialidade jamais pudesse voltar a repetir-se nem sequer remotamente. Da presidência da República ao governo de Santa Catarina, da prefeitura de Imbituba a todas as seções da Ordem dos Advogados do Brasil, do senado federal à última câmara de vereadores do mais longínquo rincão da pátria, ninguém se furtou a chorar em público pelo destino brutal imposto a Vitor em pleno colo da mãe. Missas e rosários foram rezados por todas as dioceses, por todas as paróquias, em intenção fervorosa da alma de Vitor, em súplica ardente pela serenidade da mãe e do pai, em heroico pedido de conversão do coração do assassino. Flores, coroas e velas acesas foram acumuladas nas calçadas da rodoviária de Imbituba, elevadas espontaneamente a santuário e memorial de uma vida extirpada pelo mais estarrecedor dos atos terroristas que poderiam esfaquear um país civilizado em qualquer tempo de sua história. A foto das sandálias infantis do pequeno Vitor, esquecidas na calçada da rodoviária de Imbituba na tarde horrenda do seu assassinato, entraram para o álbum imortal das mais dolorosas imagens históricas do nosso país.

Parágrafo 7. Era 30 de dezembro de 2015. Era meio-dia. O Brasil parou assim que a vida de Vitor foi parada. As celebrações de fim de ano ficaram todas em segundo plano. O horror da história de Vitor, interrompida abruptamente, foi tão descomunal que era quase impossível acreditar que tal história fosse verdadeira.






Parágrafo 8. Acontece que, de fato, essa história não é verdadeira.

Parágrafo 9. Não toda ela. Só uma pequena parte é verdadeira – o resto é todo falso. E as partes falsa e verdadeira não são as únicas duas em que essa história se divide. Ela se divide também numa parte óbvia e numa parte absurda. A parte óbvia é a parte verdadeira, enquanto a parte absurda é a parte falsa, seria de supor-se – mas esta suposição está errada. A parte absurda é que é a verdadeira. A parte óbvia é que é a falsa.

Parágrafo 10. A parte dessa história que vai do Parágrafo 1 até o Parágrafo 4 é absurda – mas verdadeira. A parte da história que vai do Parágrafo 5 ao Parágrafo 7 deveria ser a mais óbvia das continuações dessa absurda história verdadeira – mas é falsa. Escandalosamente falsa.

Imoral da história. Quase ninguém chorou por Vitor. Quase ninguém se chocou mais que momentaneamente com a morte absurda de Vitor. Quase ninguém foi a público, declarando-se violentado como brasileiro por causa do assassinato estrondoso de Vitor, para exigir um basta.

Vitor Pinto, afinal, era um menino indefeso de 2 anos – mas era índio.

Vitor Pinto estava sendo amamentado pela mãe quando foi selvagemente degolado em seu colo – mas era um índio.

Vitor Pinto foi assassinado à luz do meio-dia em plena estação rodoviária – mas era só um índio.

Vitor Pinto tinha chegado de uma viagem longa para acompanhar a mãe que vinha tentar vender seu artesanato no litoral – mas não era nada mais do que um índio.

Um desses índios que estamos acostumados a reduzir indistintamente a sujos, fedidos, vagabundos, imprestáveis, arrematando com a etiqueta do “são todos iguais”. Um desses índios que tentam vender seu artesanato nas rodoviárias do Brasil, mas que estamos acostumados a escorraçar porque atrapalham o público e prejudicam a paisagem. Um desses índios que, com séculos de atraso, as teorias jurídicas do Ocidente admitiram que até são gente, mas que hoje preferimos confundir com meras personificações ambulantes de ideologias questionáveis (como se eles próprios fossem os arquitetos dessas ideologias). 

Um desses índios que têm o desplante de nos esfregar na cara que ainda vivemos numa colônia remota do século XVI.

Fonte: Aleteia

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