Não, não é a mãe de Jesus. Mas também é mãe. Mãe de dez filhos menores. Dias atrás fui visitá-la mora em um cortiço, na rua Tomás de Lima, em pleno coração da cidade. Desta vez, porém, não cheguei a entrar em seu cubículo. Abraçada a quatro ou cinco crianças, no portão da entrada. Mãe e filhas aguardavam o pai que se aproximava bêbado, cambaleante, tirando a roupa e xingando. Vinha cortando a rua e tropeçando nos próprios passos. Muita gente assistia a cena. Alguns faziam dela um verdadeiro espetáculo.
Então, Meu Deus, vi a dor de perto. Uma dor funda, antiga e sem trégua no rosto daquela mulher. Uma dor de vergonha e medo no olhar aflito daquelas crianças. Mãe e filhas choravam em silêncio e o silêncio doía mais, muito mais, do que o choro. Duas pessoas ajudavam o marido e pai a chegar em casa. Outras riam disfarçadamente, algumas passavam indiferentes. E ela, D. Maria, me olhou em desespero e perguntou: “o que é que eu faço, padre?”
Agora ela está ali, a dois passos de minha cama de novo faz a pergunta e de novo não há resposta!
Com uma angústia mordendo o peito, levanto e venho rezar, rezar escrevendo, se isso é possível e a imagem de Maria de Nazaré se torna ainda mais viva. Seu rosto de sofrimento ganha uma nitidez espantosa. Sua fragilidade aparece com toda força. Vejo-a, Meu Deus, nua, só e desamparada. E vejo outras Marias, Meu Deus, tantas Marias! Marias com vidas igualmente quebradas. Marias abandonadas por seus companheiros. Marias, algumas negras, e por isso ainda mais sofridas.
Continuo escrevendo e tento rezar
Mas, como? Onde estás, ó Pai? Por que permaneces surdo? Por que te calas? A dor de Maria de Nazaré, de suas filhas e de tantas outras Marias. Essa dor não Te diz nada? Nada tens a dizer?
Silêncio…
Sim, o silêncio é total e misterioso. Lá fora a noite cresce e se faz mais escura. Aqui dentro cresce a agonia solitária. Agonia que, de tão presente, dá quase para tocar chega a ser sólida, chega a doer fisicamente e saber que daqui a pouco Valdemar, seu marido irá procurar emprego e terminar o dia pelos bares! E saber que daqui a pouco ela, uma mulher tão frágil deverá tomar esse imenso fardo nos ombros e seguir adiante! E Tu, ó Pai, continuas mudo? Indiferente? Num céu distante? A noite avança e a agonia se faz mais densa.
Tomo nas mãos a Bíblia e ponho-me a folhear suas páginas. Procuro um salmo apropriado para esta hora mas onde achar algo para tanta e tão profunda dor? Dor que está ali, a algumas quadras de minha porta e que se multiplica aos milhões por esta cidade de pedra. Dor que, silenciosa e sorrateiramente. Penetra pelas frestas de minha janela e me faz vir aqui rezar e escrever! Dor que a gente quase pode ver de tão real. Quase pode tocar como uma ferida que teima em não cicatrizar.
Por um bom tempo fico parado, escuto o silêncio.
E, coisa estranha, lentamente a agonia vai se desfazendo. De onde vem esta paz, se a dor continua ali a dois passos? Imperceptivelmente sinto-me acalmar. Mas, ao mesmo tempo, sei que lá fora o sofrimento não é menor. Que paradoxo é esse? Ou será cansaço, falsidade, ilusão? Não, não tenho a resposta: mas, no escuro, sinto alguma coisa. Relembro com força o olhar, as mãos e as palavras de D. Maria. Relembro o carinho infinito com que acarinhavam a cabecinha das crianças. Relembro a expressão de um amor doloroso, sim mas cheio de ternura e compaixão para com o marido. Sim, relembro pequenos gestos de uma mulher tão frágil na aparência e que, neste momento, me parece tão forte e destemida. Vejo-a novamente ali, na minha frente. É a mesma Maria de Nazaré, mas é já outra! Alguém que se ergue com um vigor incomum e outra vez me fixa.
Mas agora não há mais perguntas em seu olhar não há desespero, não há solidão. Há, isso sim, uma valentia tenaz e subterrânea. O bater surdo de um coração que, apesar de tudo, teima em viver. Sinto-a ainda franzina e encurvada pelo sofrimento, sim. Mas sua fraqueza explícita irradia uma luz oculta. Brilham seus olhos, trabalham suas mãos, caminham seus pés e toda ela respira um oxigênio novo e cheio de vida.
Volto às páginas da Bíblia
Aqui e ali leio trechos desconexos. Paro de escrever e ponho-me a caminhar de um lado para o outro. Onde estão as interrogações, antes tão veementes? E então pressinto a misteriosa pedagogia de Deus: a nenhuma pergunta respondeu diretamente. Silenciou, apenas silenciou! E no silêncio, com imensa sabedoria forçou-me a voltar à cena, à D. Maria e a tantas outras Marias. Fez-me ver que ali mesmo, no meio do mais profundo sofrimento. Com o fio oculto de uma dor que já dura séculos as mulheres vão tecendo a esperança da vida. Sim, Pai querido, uma vez mais a oração me devolve à realidade. Procuro a montanha e Tu me reconduzes à rua. Busco mar calmo e Tu me lanças em meio à tempestade, tento um refúgio e Tu me apontas o cotidiano, mas não me deixas só, Tua luz faz ver veredas escondidas!
A madrugada se aproxima, o dia já vem perto.
Deus permanece silencioso, mas agora sua presença me envolve.
É hora de voltar à cama e procurar dormir um pouco.
Eu Te agradeço Pai por esta … Oração!
Padre Alfredo José Gonçalves, CS
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