Minha mulher morreu para o nosso filho poder nascer


Ele é lindo!”. Inclinada na cadeira de rodas e com a testa apoiada no vidro da incubadora, Patrícia repetia a frase. Seus olhos cheios d’água encaravam Arthur maravilhados, como se vissem um anjo. O anjo que a faria continuar viva – mesmo quando o câncer
a matasse dali a sete dias.



O câncer retornou com força total

Tive a Patrícia na minha vida por dez meses. Parece que foram dez décadas. Intensas como ela, sempre animada, otimista, alto-astral... “Que mulher linda”, pensei quando a vi no bistrô onde trabalhava como garçom. Era julho de 2013. Conversa vai, conversa
vem, trocamos telefones, saímos. Em uma semana estávamos namorando e já sabíamos tudo um do outro.
Eu sabia que ela havia acabado de superar um câncer de mama. E que, apesar de feliz, andava triste: os médicos haviam dito que as sessões de quimioterapia a haviam deixado infértil. “Justo eu, que sempre sonhei em ser mãe. Porque amo crianças. E porque a maternidade é um jeito de a gente continuar no mundo, mesmo depois que parte, né?”, disse.
Quando completamos três meses juntos, um dos exames mensais de acompanhamento pós-câncer detonou a bomba nas nossas vidas: havia uma metástase (quando o câncer migra de um órgão para outro no corpo) no fígado. Os médicos acharam melhor iniciar o tratamento quimioterápico.
Patrícia encarou a notícia com o sorrisão de sempre. A quimio era velha conhecida dela, dos cinco meses de sessões na luta contra o câncer de mama! O que ela não esperava era a descoberta que faríamos dali a dois meses, logo após a segunda sessão de quimio...

Ela pediu para eu priorizar o bebê

Numa consulta de rotina no ginecologista, Patrícia descobriu que estava grávida. Nós nem desconfiamos, porque, além de não menstruar mais por causa do tratamento, os médicos haviam dito que ela não poderia engravidar. Justamente por isso, nunca usávamos métodos contraceptivos. 
Ao mesmo tempo em que nos abraçávamos e comemorávamos, perguntávamos: “E agora?”. Mantivemos a novidade em sigilo e procuramos os médicos. Eles mal podiam acreditar! Pediram novos exames e, com base nos resultados, decidimos interromper o tratamento quimioterápico até o bebê nascer, dali a sete meses. Tínhamos esperanças de que ela poderia continuar o tratamento
depois do parto.
Continuamos tocando a vida. Casamos no cartório no dia 15 de março deste ano – ela linda, com a barriguinha de 5
meses aparecendo sob o vestido branco. Ainda curtíamos a vida de recém-casados quando fortes dores nas costas e no estômago
fizeram Patrícia ir ao oncologista.
Os exames nos tranquilizaram: o câncer estava sob controle. Patrícia respirou aliviada, pois sabia que nosso filho corria sério risco se precisássemos fazê-lo nascer antes dos seis meses de gestação.
Ela me abraçou e disse: “Presta atenção no que vou pedir: se for para escolher entre eu e o Arthur, escolha ele. Assim, você ainda vai ter um pedaço de mim daqui a 20 anos”. Eu ouvi tudo aquilo, mas não assimilei. Com o pensamento sempre positivo, eu acreditava que tanto a Patrícia quanto o Arthur sairiam vivos dessa.

Patrícia só viu o nosso Arthur uma vez

Então, o inimaginável aconteceu. Em 15 dias, o tumor cresceu e derrubou a Patrícia, que precisou ser internada às pressas. E, em 14 de abril, lá estávamos nós vivendo a situação que minha mulher tanto havia temido. Na semana em que completava seis meses
de vida em seu útero, Arthur precisou vir ao mundo.
Pesando 850 gramas e 32 centímetros, ele tinha apenas 10% de chance de sobreviver. Foi imediatamente carregado para a UTI neonatal. Tonta da anestesia e fragilizada pelo câncer, Patrícia só pôde vê-lo 36 horas depois do parto, quando
a levei de cadeira de rodas até onde ele estava.
Foi um momento literalmente único, pois ela nunca mais pôde ver o nosso menino. Nossa, Patrícia jamais pôde sequer segurá-lo no colo, pois ambos estavam fracos demais para isso. Eu me alternava entre o leito dele e o dela, que precisou ser transferida para outro hospital. Eu estava um caco: não comia nem dormia direito. Foi duro vê-la definhar em questão de dias. Uma semana, para
ser exato. No dia 21 de abril de 2014, Patrícia partiu.
Confesso que até hoje não consegui organizar minhas ideias ainda. Em menos de um ano, a Patrícia entrou na minha vida, me deixou loucamente apaixonado, casou-se comigo, teve um filho meu e faleceu. Se eu penso se ela estaria aqui caso tivesse desistido da gravidez e continuado o tratamento? Não, pois nem eu nem os médicos nem ninguém saberia responder essa questão.
E não quero chorar o passado. O Arthur é o meu presente e o meu futuro. Sei que não vai ser fácil para o nosso moleque crescer sem a mãe, mas vou cuidar para que seja o menos dolorido possível. Vou guardar esta reportagem para meu filho ler quando for mais velho. Tenho certeza que o Arthur será capaz de sentir o amor que sua mãe teve por ele. Teve e tem, esteja ela onde estiver!

FELIPE PADOVANI, 26 anos, representante comercial, Araraquara, SP




*DA REDAÇÃO
Parar o tratamento ou não? Eis a questão!

Patrícia, Felipe e os médicos concordaram em parar a quimio para priorizar a gestação de Arthur. Mas mesmo que todos
tivessem sido contra, ela poderia ter suspendido o tratamento. “É direito do paciente optar por se tratar ou não”, explica
o advogado e especialista em biodireito Gilberto Bergnstein.
Diante dessa decisão, cabe ao médico explicar ao paciente quais riscos ele irá correr. “Então, o paciente assina um termo de
consentimento informado de recusa ao tratamento, provando que o médico não omitiu socorro”, detalha Gilberto.
Quando o paciente é maior de idade e está consciente, a família não tem como interferir nessa escolha – a não ser que entre com pedido de interdição, alegando (e provando) que a pessoa não tem condições mentais de tomar essa decisão. “É normal a família reagir mal, tentando mudar a ideia do paciente”, diz a psicóloga clínica Triana Portal. Mas isso só tumultua as últimas oportunidades de convivência. 
Melhor respeitar a escolha. Mas como controlar os sentimentos quando se sabe que uma pessoa querida partirá? “Mantenha-se firme na frente dela e busque ajudas externas: amigos, parentes, terapeutas... O paciente já tem uma carga muito grande para carregar!”, aconselha Triana. “E mantenha o pensamento positivo”, complementa a médica geriatra e especialista em cuidados
paliativos, Ana Cláudia Arantes. “Quando melhoramos a qualidade de vida do paciente, ele acaba vivendo mais do que se tivesse dado continuidade aos tratamentos agressivos”, diz. 

Via Sou mais eu

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